Voto de qualidade e compensação tributária: sobre a jurisprudência do Carf

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Fonte da Imagem: Poder360

Desde abril de 2020, com a publicação da Lei nº 13.988, os contribuintes passaram a ter, a seu favor, o chamado voto de desempate (ou “voto de qualidade”) nos julgamentos realizados no âmbito do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Isso significa que, nas decisões colegiadas, o empate necessariamente favorece o contribuinte, e não o Fisco, tal como ocorria até então.

A Lei nº 13.988 incluiu o artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002 com o seguinte enunciado: “Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte”.

Como se sabe, até a referida inovação legislativa, diversos temas controvertidos envolvendo créditos tributários de valores elevados eram decididos pelo voto de qualidade favoravelmente à Fazenda. Com a mudança da sistemática, o jogo tende a virar: essas controvérsias tendem a ser decididas favoravelmente aos contribuintes.

Ciente disso e inconformada, a Fazenda Nacional decidiu atuar em diferentes frentes: 1) questionou nova sistemática de desempate, que ainda aguarda pronunciamento final por parte da Suprema Corte [1]; 2) suspendeu, no contexto da crise sanitária da Covid-19, julgamentos de elevado valor e que pudessem representar uma derrota significativa do Fisco Federal; e 3) limitou, via Portaria Ministerial [2], o escopo do novo critério aos lançamentos de crédito tributário, afastando a sua aplicação dos casos em que se discute também crédito tributário, mas não constituídos por lançamento de ofício, como é o caso das compensações tributárias. O objeto de processos de compensação é o encontro de contas entre créditos do contribuinte perante o Fisco e débitos (créditos tributários) deste perante o Fisco, cuja negativa implica a exigência dos débitos não compensados.

Dentre as estratégias adotadas pela Fazenda Nacional, desperta especial preocupação a terceira. A boa ciência do Direito preza pela coerência decisória das cortes no exercício da sua função jurisdicional, como medida fundamental para assegurar segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade ao sistema jurídico [3]. Assim, em que pese o inconformismo da Fazenda Nacional ante a nova sistemática de voto de qualidade, a interpretação restritiva ao escopo do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 enseja distorções na jurisprudência do Carf.

Basta imaginar que, para uma mesma temática, havendo empate, uma mesma turma do Carf poderá decidir uma questão favoravelmente ao Fisco ou ao contribuinte, a depender exclusivamente da natureza do processo de exigência do crédito tributário: lançamento de ofício ou compensação tributária.

Com efeito, há diversos temas que podem ser objeto de processos decorrentes de lançamento de ofício ou de compensação tributária, indistintamente. Atualmente, os processos de compensação ocupam boa parte da pauta de julgamentos do Carf, sendo inquestionável a sua relevância no contencioso administrativo fiscal federal. Especialmente, no âmbito da tributação pelo PIS e pela Cofins, há diversos exemplos que podem ser citados.

No âmbito da apropriação de créditos de PIS e Cofins, na sistemática não cumulativa das contribuições sociais [4], é comum que, concluído o período de apuração, o contribuinte reveja a sua apuração fiscal e identifique despesas que poderiam dar ensejo a créditos das contribuições, mas que não compuseram a apuração original.

Assim, à luz do quanto decidido pelo STJ no REsp nº 1.221.170/PR [5], na sistemática repetitiva, o gestor pode entender que determinada despesa corresponde ao conceito de insumo pacificado pela corte e retificar a sua escrita fiscal relativamente aos períodos passados de forma a apurar um indébito passível de compensação. Em relação aos períodos futuros, este mesmo gestor poderá aplicar o critério já na apuração original das contribuições sociais, ensejando o recolhimento das contribuições em menor monta.

Neste contexto, imagine-se que, sob o fundamento fiscal de que as despesas não correspondem ao conceito de insumo, em relação aos períodos passados, as compensações pleiteadas pelo contribuinte não sejam homologadas pelas autoridades fiscais, e, em relação aos períodos futuros, o Fisco Federal promova o lançamento do crédito tributário correspondente, mediante auto de infração.

Uma vez impugnadas ambas as exigências e levadas ao Carf, havendo empate em ambos os processos (de compensação e lançamento de ofício) quanto à qualificação das despesas como insumos, poderá haver distintos resultados diante de um mesmo caso concreto.

Levada a questão à Câmara Superior do Carf, cujo propósito é uniformizar a jurisprudência do órgão, caso também haja empate, a questão poderá ser decidida a favor do Fisco ou contribuinte a depender exclusivamente da natureza do processo (lançamento ou compensação). Não nos parece ser razoável que este seja o critério decisivo do julgamento que, em última instância, representa a palavra final do Carf sobre aquele tema.

Em temas mais específicos, e que poderiam ser objeto de discussão igualmente em processos de lançamento de ofício ou compensação, já é possível verificar uma alteração no posicionamento do Carf exclusivamente em razão da alteração do voto de qualidade.

Esse é o caso, por exemplo, da discussão quanto à inclusão na base de cálculo do PIS e da Cofins, incidentes na sistemática cumulativa, das receitas financeiras advindas de rendimentos das aplicações financeiras dos bens garantidores de provisões e reservas técnicas por seguradoras e resseguradoras.

Sem entrar no mérito dessa controvertida discussão, importa frisar que, após a introdução do artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002, foram proferidos acórdãos pelo Carf favoravelmente ao contribuinte pelo voto critério de desempate em casos envolvendo lançamento de ofício [6]. O ponto é que, caso se tratasse de um processo decorrente de compensação tributária, o resultado seria diametralmente oposto.

A nova sistemática do voto de qualidade, favorável ao contribuinte, ainda é uma novidade e não foi extensivamente testada, especialmente em razão das restrições impostas aos julgamentos de casos de elevado valor pelo contexto pandêmico verificado, em certa medida, até os dias de hoje.

Como advogados e juristas, preocupa-nos as consequências decorrentes da interpretação fazendária excessivamente restritiva do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 que criou critérios de desempate distintos, a depender exclusivamente da natureza do processo. Parece-nos que este não é um critério decisório adequado para discriminar contribuintes que, se encontrando em situações equivalentes, levem uma mesma questão à jurisdição do Carf, razão pela qual entendemos haver ofensa ao princípio da isonomia, além, é claro, de tornar o sistema decisório incoerente. Já é chegada a hora de rever este entendimento e aplicar, de modo uniforme, um mesmo critério de desempate, a despeito da natureza do processo de exigência de crédito tributário.

Notas

[1] A discussão se encontra em curso nas ADIs nº 6.399, 6.403 e 6.415.

[2] Portaria do Ministério da Economia nº 260, de 1º de Julho de 2020.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica, 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 350.

[4] Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003.

[5] STJ. REsp nº 1.221.170/PR, relator ministro Napoleão Nunes Maia, Primeira Seção, julgado em 22.02.2018, DJe 24.04.2018).

[6] Ac. Carf nº 3201-009.552, redator designado Márcio Robson Costa, PTA nº 16682.722.324/2017-67, julgado em 26.11.2021.

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