As opções veiculadas pela EC nº 113 podem ser interpretadas como modernização importante na forma de utilização de precatórios, ainda que com algumas ressalvas.
A Emenda Constitucional (EC) nº 113, de 2021, junto com a de número 114, publicada poucos dias depois, trouxe relevantes alterações ao regime constitucional dos precatórios. De um lado, algumas percebidas negativamente, tendo em vista maiores dificuldades no recebimento dos créditos pelos credores (vide a imposição de limite anual ao montante que pode ser pago pela União). De outro, novas alternativas à utilização de precatórios que podem ser vantajosas a seus titulares.
Recorda-se, a esse respeito, que os precatórios, em breve síntese, representam títulos de crédito de indivíduos ou empresas contra o Estado (em qualquer nível federativo), decorrentes de ações judiciais nas quais tenha restado vencido o ente federativo. A Constituição Federal prevê uma série de mecanismos e prazos para seu pagamento, além de prioridades, o que leva à existência de uma “fila” de pagamentos. Por vezes, os titulares chegam a levar muitos anos para receber os valores a que têm direito, notadamente nos níveis estadual e municipal.
Isso posto, dentre essas alternativas introduzidas pela EC nº 113, duas valem particular referência: a possibilidade de usar precatórios e créditos reconhecidos por decisão judicial transitada em julgado para quitar débitos tributários inscritos em dívida ativa junto ao mesmo ente federativo, inclusive no âmbito de transação; e o pagamento de outorga de delegações de serviços públicos e demais concessões negociais junto ao mesmo ente.
As opções veiculadas pela EC nº 113 podem ser interpretadas como importante modernização.
Importante notar que o dispositivo da EC nº 113 (artigo 1º, no que altera o artigo 100, parágrafo 11 da Constituição Federal) faculta ao credor ofertar seus créditos para as hipóteses indicadas “com autoaplicabilidade para a União”, o que leva a uma primeira interpretação no sentido de ser desnecessária regulamentação complementar para que o titular de tais créditos exerça esse direito perante a União. Não obstante, o tema ainda é controverso e espera-se que a administração federal divulgue normas para disciplinar o assunto. Não há previsão similar no tocante a Estados e municípios, bem como ao Distrito Federal, o que tonar mais certa a necessidade de que tais temas editem normas regulamentares para tratar do tema.
De toda forma, as opções veiculadas pela EC nº 113 podem ser interpretadas como modernização importante na forma de utilização de precatórios, ainda que com algumas ressalvas, conferindo-lhes maior liquidez e oportunidades a seus titulares, que podem se ver dispensados da necessidade de aguardar anos ou até décadas para sua monetização.
No caso tributário, por exemplo, a utilização de precatórios como “moeda de troca” é um importante e notável avanço. Via de regra, a possibilidade de quitação de dívidas tributárias inscritas em dívida ativa com ativos outros que recursos e bens próprios do contribuinte ainda é muito tímida. Mesmo a compensação com tributos devidos pelo próprio contribuinte é sujeita a diversas barreiras (até muito recentemente, por exemplo, não era possível compensar tributos federais como Imposto de Renda com as contribuições devidas ao INSS).
As modalidades de parcelamento e transação tributária, por exemplo, mesmo em seus formatos mais benéficos, até dias atrás não admitiam a utilização de prejuízos fiscais acumulados, outro importante ativo dos contribuintes que pode servir como moeda de pagamento. De fato, tal possibilidade só foi normatizada com a recentíssima Lei nº 14.375/2022, a qual previu expressamente não só o uso dos créditos de prejuízo fiscal (limitado a 70% do saldo remanescente após incidência de descontos, conforme aplicável), como também o uso de precatórios ou direitos creditórios com sentença de valor transitada em julgado como benefícios a serem aplicados nas negociações tributárias.
Por outro lado, é certo que o orçamento dos entes federativos possui certa possibilidade quanto à arrecadação tributária em cada período, parecendo complexo avaliar o impacto da liberação dos pagamentos com precatórios às receitas previstas pelos entes federativos, fator que pode ser levado em consideração na esperada regulamentação do tema.
Por sua vez, também as privatizações e concessões já vem sendo permeadas por esse debate, que abre possibilidades aos agentes privados, mas também incertezas. Um exemplo recente é a licitação relativa à Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), em que a Comissão de Licitação não acolheu requerimento de impedir o uso de precatórios como moeda de pagamento, ainda que este não fosse previsto expressamente no edital. De fato, se (no âmbito federal) a possibilidade de pagar por concessões e outras obrigações com o Poder Público via precatório é autoaplicável, nos termos da EC nº 113, não haveria que se falar em empecilhos à sua utilização (como seria o caso de não se prever tal modalidade no edital de licitação).
Dado esse contexto, poder usar precatórios para essas finalidades e para as demais previstas no novo panorama constitucional se mostra medida bem-vinda, sem prejuízo à necessidade de adequado controle dessa modalidade, tendo em vista o impacto na arrecadação e nas contas públicas.
Por fim, destaca-se que é inclusive compreensível que haja certa recalcitrância por parte da administração pública em aceitar precatórios como moeda de troca, dados fatores como impacto no fluxo de caixa governamental e, também, a incerteza quanto ao valor recuperável dos créditos subjacentes em relação a seu valor de face, o que pode levar a prejuízos para o governo na quitação de débitos de valor equivalente, além do possível não atingimento das previsões orçamentárias de arrecadação. Não obstante, trata-se de desafios a serem superados em prol de uma relação mais eficiente entre Estado e agentes privados, que tampouco devem ser obrigados a carregar títulos representativos de valores
Arthur Barreto e Luis Fernando Zenid são, respectivamente, advogado da área tributária e sócio da área de construção e infraestrutura do escritório Donelli e Abreu Sodré Advogados (DSA Advogados).
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