STF considera inconstitucional reter tributo de quem não tem cadastro em municípios.
O Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de concluir pela inconstitucionalidade da retenção de ISS de prestadores de serviço por ausência de cadastro municipal[1]. Após quase duas décadas de intensas controvérsias, não será mais exigido que um prestador de serviço sediado em município distinto daquele onde está o tomador faça cadastro neste último, sob pena de retenção do ISS na fonte.
O direito de retenção do ISS como consequência da falta de cadastro era uma figura teratológica que gerava, não raro, dupla tributação indevida, violação de vários princípios bem enumerados pelo voto vencedor, complexidade injustificada e aumento desnecessário do custo e da segurança jurídica de empresas prestadoras de serviço.
A matéria de fundo do Recurso Extraordinário julgado é a constitucionalidade do art. 9º-A da Lei Municipal de São Paulo/SP n. 13.701/03[2]. Este dispositivo, sob o argumento de controlar e prevenir planejamentos tributários abusivos de ISS, tornou obrigatória a “inscrição em cadastro da Secretaria Municipal de Finanças” por prestadores de serviços que, emitindo nota fiscal de outro Município, exercessem sua atividade em favor de tomador estabelecido em São Paulo. É o conhecido “CPOM” – Cadastro de Empresas de Fora do Município, exigido por São Paulo e, também, por outros Municípios do país.
A lei municipal analisada, em síntese, impôs tal dever a todas as pessoas jurídicas que, mesmo prestando serviços não tributáveis pelo município de São Paulo, façam-no em benefício de empresas sediadas em seu território. Até aí, se o cadastro fosse simples e imediato, não haveria maiores problemas. Acontece que o cadastro é burocrático, demorado e sua ausência tem como consequência o dever, imposto à fonte pagadora, de reter o valor equivalente ao ISS aplicável na operação. Isso a despeito, é claro, da incidência regular desse imposto no município da sede do prestador.
É bom esclarecer que os serviços listados no dispositivo analisado pelo Supremo estão incluídos na competência tributária do Município onde está localizado o estabelecimento do prestador. Assim, não se trata, em hipótese alguma, de uma retenção de ISS comum, em que o Município competente para a exigência do imposto antecipa ou difere o seu pagamento, atribuindo-o a uma pessoa distinta da do contribuinte. No caso julgado, o dever de cadastro é imposto a quem presta serviços sujeitos à incidência do ISS no local de sua sede e o dever de retenção, por sua vez, ao tomador, situado em outra municipalidade. Por isso, é, na realidade, dever instrumental imposto ao prestador que, se não cumprido, enseja pagamento de 100% do tributo a um Município que jamais teria direito sobre aquele valor.
Nesse sentido, por força dessa legislação e daquelas a ela análogas, os prestadores têm que efetuar o cadastro em todos os Municípios onde possuam clientes ativos, a fim de evitar a duplicidade de recolhimento do ISS. O procedimento, como parece claro, implica o dispêndio de inúmeras horas com (i) análise das regras vigentes em cada Município, (ii) observância de cada procedimento específico e (iii) coleta de todos os documentos, nos 5.570 Municípios do Brasil. Ademais, esses documentos divergem em tipo e quantidade a depender do Município, chegando a somar mais de 12 no Município de São Luís – MA e 10 em São Paulo – SP, por exemplo.
Os tomadores, por seu turno, são obrigados a manter controle atualizado a respeito dos cadastros, de modo a identificar a regularidade de todos seus prestadores e, se for o caso, realizar a retenção e o recolhimento do ISS.
Imagine, então, uma empresa sediada em qualquer Município do País, que preste serviços a tomadores sediados em diversas outras localidades. Mesmo que o ISS seja devido ao Município da sede do seu estabelecimento, essa empresa teria que acompanhar as legislações de todos os demais, a fim de verificar a existência desse dever de cadastro. A depender da operação, a pessoa jurídica terá, verdadeiramente, que acompanhar a legislação dos 5.570 Municípios brasileiros. Não será diferente em relação às tomadoras, que, para cumprir seu dever de reter e recolher o ISS, também deverão manter o acompanhamento da situação cadastral de todos os seus prestadores.
Burocráticos, lentos e onerosos, os cadastros municipais representam prejuízos jurídicos e econômicos às empresas e não geram qualquer vantagem em termos de fiscalização que os legitime. As municipalidades alegam que esse cadastro é um poderoso instrumento para coibir planejamentos abusivos dos contribuintes. Para esta finalidade, tudo estaria legitimado. O argumento, porém, é falso.
Na sociedade em rede, todas as informações sobre qualquer negócio estão nas mídias sociais ou nos cadastros eletrônicos e podem, com muito mais eficiência, ser oferecidas pela cooperação com bancos de dados dos Estados e da União. Essas informações sim podem fornecer, com licitude, elementos para identificar, qualificar e punir atos que se mostrem fraudulentos, dolosos ou simulados. Nada justifica, portanto, a manutenção do dever e da sua sanção que premia a lentidão e a incompetência de municípios que, com ou sem a intenção, retardam a conclusão do cadastro e recebem arrecadação que não lhes pertence.
Se esses dados já não evidenciassem a ilicitude nomogenética por si só, cabe registrar a flagrante inconstitucionalidade da previsão, precisamente reconhecida nas razões que fundamentam o voto vencedor do julgamento aqui analisado. Conforme entendimento manifestado pelo Min. Marco Aurélio, acompanhado pelos Ministros Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Nunes Marques e Roberto Barroso, a norma analisada é inconstitucional pelas seguintes razões:
violação ao princípio da territorialidade, uma vez que o Município não possui competência para impor deveres a pessoas jurídicas situadas fora da sua abrangência espacial e que estão sujeitas à tributação, pelo ISS, noutro Município. Como bem destacou o Exmo. Ministro Relator, se não há competência para a instituição do tributo, não é possível a criação de dever instrumental;
- violação ao art. 30, I, da Constituição da República, uma vez que a instituição de dever dessa natureza foge do interesse local;
- violação ao art. 146, III, da Constituição da República, pois, ao prescrever a “penalidade” de retenção do ISS pelo tomador dos serviços quando não é feito o cadastro, a legislação municipal acaba modificando o critério espacial e a sujeição passiva do tributo, o que compete exclusivamente à lei complementar; e
- violação ao art. 156, III, da Constituição, pois a determinação implica exigência de ISS por descumprimento de dever instrumental.
São, portanto, muitas as razões pelas quais se pode concluir que o Supremo Tribunal Federal decidiu de forma correta pela inconstitucionalidade da exigência de um cadastro que, se não for feito, autoriza a retenção na fonte de um imposto para um Município que não tem direito sobre esse tributo.
Num ano que começa muito difícil para os contribuintes, foi positivo ver uma decisão que atualiza o Sistema Tributário Nacional, afastando uma obrigação ineficiente, que enseja graves prejuízos jurídicos e econômicos. Além disso, a simples indicação de um desfecho positivo para o tema já aponta para uma considerável simplificação do ISS em todo país.
[1] Recurso Extraordinário n. 1.167.509, Rel. Min. Marco Aurélio, Tema n. 1.020 da repercussão geral. A tese foi fixada nos seguintes termos: “É incompatível com a Constituição Federal disposição normativa a prever a obrigatoriedade de cadastro, em órgão da Administração municipal, de prestador de serviços não estabelecido no território do Município e imposição ao tomador da retenção do Imposto Sobre Serviços – ISS quando descumprida a obrigação acessória.”
[2] Incluído pelo art. 2º da Lei Municipal de São Paulo/SP n. 14.042/05.
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