Em meio aos efeitos da crise na arrecadação, os governos estaduais estudam formas de tributar segmentos de atividade que se fortaleceram durante a pandemia ou foram menos abalados. No radar estão a cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a transferência eletrônica de dados, como streaming, ou a venda em plataformas virtuais. Em alguns casos, o desafio para gerar novas receitas é enfrentar o imbróglio jurídico envolvido.
No Rio de Janeiro, sancionada pelo governador Wilson Witzel (PSC) em abril, a Lei 8.795/20 é alvo de controvérsia entre tributaristas por pretender cobrar o ICMS sobre operações eletrônicas de prestação de serviços de comunicação ou de vendas de bens e mercadorias digitais, mediante transferência eletrônica de dados. A lei ainda precisa ser regulamentada para entrar em vigor. Na prática, prevê a incidência de ICMS sobre a prestação de serviços via streaming.
Com uma queda projetada de R$ 11,4 bilhões na receita de ICMS para este ano, o governo do Rio de Janeiro se baseou num convênio de 2017 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) para adequar a legislação estadual à cobrança do imposto sobre operações com bens e mercadorias digitais.
Sócia da área tributária do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe, Maria Fernanda Furtado conta que a legitimidade do próprio convênio é alvo de questionamento na Justiça. Cinco Estados e mais o Distrito Federal incorporaram até agora o convênio a sua legislação.
“A lei pretende caracterizar alguns desses bens de natureza digital como mercadorias”, esclarece a advogada. No entender de Maria Fernanda, a cessão de acesso ao conteúdo digital (sejam filmes, áudio ou jogos) via internet não pode ser classificada como serviço de comunicação nem como uma venda de mercadoria digital. Isso porque assistir um filme pela web, por exemplo, não implica na cessão definitiva da titularidade daquele conteúdo. “Existe dificuldade em capturar a riqueza gerada pelo comércio eletrônico”, diz a tributarista.
Outra questão importante é a disputa entre Estados e municípios pela tributação do streaming. Uma alteração na Lei Complementar 116/2003 incluiu o streaming entre as bases de cobrança do ISS, arrecadado pelos municípios. Esse conflito de competência está sendo julgado em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pelo Supremo Tribunal Federal, lembra Eduardo Fleury, sócio do FCR Law.
Rogelio Pegoretti, secretário de Fazenda do Espírito Santo, defende a tributação dessas operações em plataformas digitais, mas devido ao conflito de competência entre Estados e municípios, o governo capixaba deve acompanhar a iniciativa fluminense e seus desdobramentos para tomar uma decisão. “Há empresas que defendem que nem o ISS e nem o ICMS podem ser cobrados”, diz. Além da insegurança jurídica, que pode resultar em custos judiciais, avalia ele, é preciso analisar se o momento de crise é adequado para lançar novas tributações.
George Santoro, secretário de Fazenda de Alagoas, diz que neste momento a estratégia é melhorar mecanismos de fiscalização em segmentos já tributados. No de restaurantes, a ideia é controlar melhor as vendas pelas plataformas digitais, que tornaram-se mais representativas durante a crise. As plataformas, diz o secretário, terão de informar as vendas para a Fazenda que, com base nos dados, vai controlar o ICMS recolhido pelos restaurantes.
No caso da tributação que o Rio quer instituir, além da questão da disputa entre Estados e municípios, há questões de legalidade que certamente serão questionadas, segundo o tributarista Gustavo Brigagão, sócio do Brigagão, Duque Estrada Advogados. O texto da Lei 8.795/20 determina que o recolhimento do ICMS ficará a cargo das detentoras do site ou da plataforma eletrônica que comercializarem o serviço de streaming ou, em alguns casos, pelo intermediador financeiro, como as operadoras de cartão de crédito e débito. “Isso é ilegal porque a definição do responsável financeiro exige lei complementar e esse responsável precisa ter relação com o fato gerador, o que não é o caso da operadora de cartão de crédito.”
“A lei foi falha ou pelo menos incompleta ao não especificar em que hipóteses o intermediário financeiro poderá ser notificado”, aponta ainda João Rezende, associado da área tributária do Trench Rossi Watanabe.
Maria Fernanda Furtado destaca que a tendência mundial é de concentração da responsabilidade pelo recolhimento dos tributos sobre as plataformas digitais.
Em nota, a Secretaria Estadual de Fazenda do Rio de Janeiro informou que os principais objetivos da lei “são o de proteger o emprego, oferecer uma concorrência mais leal, permitir a médio prazo a redução da carga tributária e diminuir o custo da burocracia para as empresas, já que, em médio prazo, a lei vai reduzir em até 30% a burocracia em ICMS”. A Fazenda fluminense argumenta ainda que haverá redução de sonegação fiscal.
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