ICMS na base de créditos de PIS/Cofins, Tema 756 da repercussão geral e a MP 1159

Medida Provisória viola dispositivos constitucionais e contraria a decisão do STF em julgamento do Tema 756

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O julgamento do Tema 756 da repercussão geral, que tratou da não cumulatividade do PIS/Cofins, foi concluído[1] há menos de dois meses pelo STF com pouquíssimo entusiasmo por parte dos contribuintes. O resultado foi visto como uma derrota pelo mercado, que esperava que a Corte garantisse uma não cumulatividade “plena”, em linha que tenderia a ampliar o espectro de possibilidades de créditos aceitas por Carf e STJ (mais ampliativas do que os critérios da Receita Federal).

Dinheiro, Real Moeda brasileira

Crédito: José Cruz/Agência Brasil

Embora a decisão tenha frustrado algumas expectativas, trata-se de precedente importante para impor limites ao legislador infraconstitucional no trato da não cumulatividade das contribuições. Isso porque, ainda que o STF tenha reconhecido uma “autonomia” do legislador para tratar do tema, sem o reconhecimento de amarras mais objetivas no texto constitucional — tal como ocorre com o ICMS e o IPI —, a conclusão foi a de que essa liberdade não é absoluta e deve, necessariamente, respeitar os preceitos constitucionais, tais como a matriz constitucional das contribuições, a razoabilidade, a isonomia, a livre concorrência e a proteção à confiança.

A despeito de alguns desses limites terem surgido em decisões anteriores da corte (isonomia no Tema 244, livre concorrência e isonomia no Tema 304), o Tema 756 consolidou a posição do STF e fixou as balizas para que qualquer legislação que pretenda alterar o regime não cumulativo das contribuições passe no teste de constitucionalidade — sem prejuízo da análise de situações pretéritas que também possam atentar contra essas balizas.

Menos de dois meses após a conclusão do julgamento, o governo federal editou a Medida Provisória 1.159/2023, cujo ponto mais polêmico é a determinação de que não dá direito a crédito de PIS/Cofins o valor “do ICMS que tenha incidido sobre a operação de aquisição”.

A MP, que também determina que não integra a base de cálculo das contribuições as receitas “referentes ao valor do ICMS que tenha incidido sobre a operação”, tem uma clara intenção de alinhar a apuração de débitos e créditos de PIS/Cofins à decisão do STF no Tema 69 da repercussão geral, que determinou que o ICMS não compõe a base de cálculo das contribuições.

Contudo, embora sob um ponto de vista estritamente econômico a equiparação das bases de débitos e créditos, no tocante ao ICMS, faça sentido, parece que a MP falha no teste de compatibilidade com a Constituição construído pelo STF no julgamento Tema 756, o que a enfraquece juridicamente.

Primeiramente, a MP parece subverter a matriz constitucional das contribuições, especificamente no que diz respeito à incidência não cumulativa. Isso porque, diferentemente do que ocorre com o ICMS e o IPI, o STF deixou claro que a efetiva incidência na etapa anterior não é uma condição para que os gastos ensejem direito a crédito das contribuições, já que a Constituição adota critérios distintos para esses tributos, que são “deveras distintos”.

Esse é o racional das Leis 10.637/02 e 10.833/03 e demais leis do PIS/Cofins, tanto que a aquisição de bens e serviços de empresas sujeitas ao lucro presumido e ao Simples ensejam créditos, quando cabíveis, com a aplicação de alíquotas (9,25%) superiores às “incidentes” nas apurações desses fornecedores (até 3,65%, no caso do presumido), não tendo a Corte Constitucional apontado qualquer incongruência nesse mecanismo.

Nessa linha, caso a tendência da legislação seja a de cada vez mais permitir o crédito somente sobre montantes que efetivamente tenham sido tributados nas operações anteriores, de modo semelhante ao ICMS e ao IPI, toda a lógica da não cumulatividade do PIS e da Cofins deverá ser revista, para acolher os reclamos de muitos contribuintes e também permitir o creditamento de toda e qualquer aquisição que tenha sofrido a incidência das contribuições — talvez nos exatos montantes em que tenha havido essa incidência, para que haja uma total aderência entre incidências e créditos.

Nesse ponto, além de revelar pouca razoabilidade, ao caminhar rumo a um regime de “imposto contra imposto”, a MP pode desencadear um processo de revisão das balizas da não cumulatividade do PIS/Cofins pelo STF, eis que, na linha do prenúncio do Tema 337, as Leis 10.637/02 e 10.833/03, com a alteração, estariam mais avançadas em seu “processo de inconstitucionalização” ao adotar o critério de incidência nas etapas anteriores apenas como bloqueio e não como vetor positivo na apropriação de créditos, em clara adoção de dois pesos e duas medidas sem qualquer razoabilidade.

Além disso, há uma falha na premissa de que receitas e despesas devam ter tratamentos equivalentes. Nessa linha, a exposição de motivos da MP deixa claro que “o valor do ICMS destacado na Nota Fiscal, conforme decisão do Supremo, não integra o preço/valor do produto, visto que apenas transita no caixa das empresas para depois ser recolhido aos Estados. Logo, na apuração dos créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins (…) deve ser efetuada também a exclusão do valor do ICMS destacado na Nota Fiscal de aquisição”.

Ocorre que, se por um lado o STF reconheceu que o ICMS não é receita dos fornecedores, pois somente transita no caixa das empresas, por outro não é possível concluir automaticamente, a partir dessa premissa, que o ICMS destacado na nota não compõe a despesa do adquirente com a aquisição da mercadoria ou do serviço, ou seja, como parte mesma desse preço.

Isso porque, caso não compusesse o preço, não restaria outra qualificação para o montante de ICMS senão a de tributo pago pelo adquirente, do que decorreria a conclusão lógica de que é ele (adquirente), não o fornecedor, o real contribuinte do imposto estadual, o que já foi amplamente rechaçado pelos tribunais e encontra óbice em toda a construção jurisprudencial em torno do art. 166 do CTN. Por mais ilícito tenha sido o pagamento do ICMS, o adquirente não tem legitimidade para reaver qualquer pagamento indevido do fornecedor, que é o único contribuinte do imposto estadual. Embora essa construção tenha falhas, é o regime legal vigente até que haja uma alteração no CTN e sacramenta o afastamento dos adquirentes do fato gerador em concreto do ICMS.

A MP também impõe alguns problemas de isonomia e de ordem concorrencial, na medida em que prevê o aproveitamento dos mesmos montantes de créditos ainda que os contribuintes desembolsem valores distintos na aquisição de mercadorias e serviços, em função de diferentes alíquotas de ICMS que podem ser aplicadas nas operações (4%, 7%, 12% ou 18%, entre outras).

Com efeito, supondo que um contribuinte possa adquirir a mesma mercadoria, pelo mesmo valor líquido de R$ 82, de um fornecedor A no mesmo Estado (com ICMS a 18%), de um fornecedor B de outro Estado com ICMS de 7% ou 12% (mercadoria nacional), e de um fornecedor C de um terceiro Estado a 4% (mercadoria importada), o valor total da operação será diferente dependendo de sua origem: R$ 100 com a aplicação de 18%, R$ 93,18 com 12%, R$ 88,17 com 7% e R$ 85,42 com 4%.

Antes da MP, os créditos de PIS/Cofins eram proporcionais a esses valores (R$ 9,25 nas aquisições a R$ 100; R$ 8,62 nas de R$ 93,18; R$ 8,16 nas de R$ 88,17 e R$ 7,90 nas de R$ 85,42 — ou seja, sempre 9,25%), conforme abaixo:

ICMS 4% 7% 12% 18%
Valor mercadoria 85,42 88,17 93,18 100,00
Crédito PIS/Cofins 7,90 8,16 8,62 9,25
Percentual do crédito s/ aquisição 9,25% 9,25% 9,25% 9,25%

Com a MP, todas as aquisições ensejariam o mesmo crédito de PIS/Cofins de R$ 7,59, atribuindo um crédito proporcionalmente maior quanto menor fosse o preço pago:

ICMS 4% 7% 12% 18%
Valor mercadoria 85,42 88,17 93,18 100,00
Crédito PIS/Cofins 7,59 7,59 7,59 7,59
Percentual do crédito s/ aquisição 8,88% 8,60% 8,14% 7,59%

Ao assim fazer, a MP trata igualmente situações distintas, seja pelos montantes efetivamente gastos pelos adquirentes, seja pela origem das mercadorias. Essa distorção pode levar os contribuintes a alterar suas cadeias de suprimentos, dando um efeito indutor à MP de questionável razoabilidade, podendo ainda trazer consequências concorrenciais e acarretar violações à isonomia e à não discriminação em função da origem dessas mercadorias, o que é rechaçado pela Constituição.

Além disso, a restrição ao crédito sobre a parcela do ICMS também pode ensejar discussões quanto ao princípio federativo, ao tornar mais atraentes as aquisições de mercadorias de estados com benefícios fiscais. A lógica é a de que, se atualmente em uma aquisição interna com ICMS a 18% (sem benefício) o crédito de PIS/Cofins é superior ao de uma transação interestadual a 4%, 7% ou 12% (ainda que esses percentuais não sejam integralmente cobrados pelos Estados de origem), pois o ICMS inferior torna a base desses créditos também inferior, talvez os ganhos com benefícios de ICMS não justifiquem a operação com fornecedores de outros Estados, justamente pela diferença que o ICMS traz nos créditos de PIS/Cofins.

Com a anulação dos efeitos do ICMS nesses créditos, proporcionada pela MP, em um cenário de equivalentes valores líquidos de aquisição (conforme parágrafo anterior) pode ser mais atraente adquirir mercadorias incentivadas, já que a operação interna, de valor superior exclusivamente por causa do ICMS interno (de 18%), perderia competitividade ante a impossibilidade de creditamento do valor total da aquisição (que incluía o ICMS antes da MP). É claro que esse ponto é casuístico e depende de cada situação concreta, mas é mais um potencial fator de indução que deve ser levado em consideração.

No mais, a utilização de medidas provisórias pelo governo federal, pela possibilidade de introdução de regras inovadoras e com força de lei no sistema, é instrumento de uso excepcionalíssimo, tendo em vista que, em um regime democrático, é do legislativo o papel de produção de leis. Bem por isso, as medidas provisórias somente podem ser criadas em casos de relevância e urgência, o que não parece ser o caso da matéria endereçada pela MP 1.159, já que (1) a exclusão do ICMS das bases dos débitos já se encontrava pacificada (ao menos) desde 2017, e (2) o debate sobre o ICMS nos créditos surgiu tão logo o Tema 69 foi definido e poderia ter sido endereçado desde então via projeto de lei.

Por tudo isso, a MP 1.159/2023 parece não estar aderente à posição do STF manifestada no julgamento do Tema 756 e a outros preceitos constitucionais, razão pela qual não deveria ser mantida no tocante à exclusão do ICMS da base dos créditos de PIS/Cofins dos contribuintes. No mais, considerando que a MP acentua — e não exatamente cria — diversos dos problemas abordados neste texto, ela reforça a necessidade de mudanças mais profundas no sistema tributário, de modo a racionalizar de uma vez por todas a tributação do consumo, pois medidas paliativas que visam apenas o incremento da arrecadação, sem uma avaliação mais sistemática, somente contribuem para o aumento do contencioso e da insegurança jurídica no país.


[1] O STF concluiu o julgamento do mérito do RE 841979, caso que direcionou o julgamento do Tema 756. O acórdão ainda não foi publicado e em tese ainda poderão ser opostos embargos de declaração.

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