Tributaristas afirmam que PLP 11/2020 pode representar ofensa ao pacto federativo e ao princípio da autonomia dos estados.
A mudança na tributação sobre combustíveis, se aprovada, poderá levar os estados a contestarem a medida no Supremo Tribunal Federal (STF). Tributaristas ouvidos pelo JOTA afirmam que a principal questão é se a mudança fere ou não o pacto federativo e o princípio da autonomia dos estados.
Na noite da última quarta-feira (13/10), a Câmara dos Deputados aprovou, por 392 a 71 votos e duas abstenções, o texto principal do PLP 11/2020, que muda as regras do ICMS sobre combustíveis na tentativa de estabilizar os preços nas bombas.
A principal mudança é que, pela proposta, a cobrança do ICMS substituição tributária (ICMS-ST) deixa de ser um percentual (alíquota ad valorem) sobre o preço médio dos combustíveis para ser uma alíquota fixa por unidade de medida (alíquota ad rem), no caso o litro.
O advogado tributarista Erich Endrillo Santos Simas, professor de direito tributário do Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e sócio do escritório Allemand, Endrillo e Pereira Advogados Associados, afirmou que a determinação que consta do PLP 11/2020 para que a alíquota seja calculada com base na média dos dois anos anteriores pode gerar um contencioso, sob a alegação de interferência na autonomia dos estados.
Na prática, se a cotação do petróleo (um dos fatores que influencia o valor do combustível) estiver baixo dois anos atrás e alto no último ano, isso terá um efeito positivo agora, com redução no valor médio do combustível na comparação com o cenário atual. Mas, se o preço do petróleo estiver alto lá atrás e baixo agora, o impacto será negativo, com alta no valor médio do combustível e um “descolamento” com o cenário atual.
“Isso é algo inusitado e que representa um descolamento da realidade momentânea, o que pode ensejar uma grande judicialização. Os estados podem argumentar que a proposta é inconstitucional e representa perda de autonomia, uma vez que a quantificação utiliza uma base de cálculo de dois anos atrás, uma presunção não real”, afirma Endrillo.
No que diz respeito ao formato legal do projeto, no entanto, Endrillo não enxerga inconstitucionalidade, uma vez que se trata de uma lei complementar em discussão no Congresso Nacional, que é o meio para se estabelecer uma regra geral em direito tributário. Além disso, ressalta o tributarista, a Constituição, em seu artigo 155, § 4º, alínea b, prevê expressamente a possibilidade da instituição de uma alíquota ad rem na tributação dos combustíveis. Segundo o dispositivo, as alíquotas do ICMS sobre combustíveis “poderão ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem , incidindo sobre o valor da operação ou sobre o preço que o produto ou seu similar alcançaria em uma venda em condições de livre concorrência”.
Fragilidades do PLP
Para o tributarista Giusepe Pecorari Melotti, do escritório Bichara Advogados, o formato de cálculo da alíquota proposta pelo PLP é, justamente, uma das “fragilidades” que podem levar a sua judicialização e que precisarão ser enfrentadas pelo Senado.
Ele observa que, enquanto os preços são praticados individualmente pelos estados, o projeto apresenta um valor médio nacional, calculado pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), como base para a definição das novas alíquotas.
“Eu acredito que os estados vão querer usar o seu próprio preço para calcular a nova alíquota. Em tese, determinar que a nova alíquota será calculada com base no preço médio nacional fixado pela ANP pode ferir o pacto federativo e a autonomia dos estados em definir sua própria alíquota”, afirma Melotti.
Além disso, o advogado afirma que o formato proposto levará a uma diferença grande entre as alíquotas praticadas por cada unidade da federação. A partir de um exercício, ele afirmou que, se as regras do PLP fossem aplicadas hoje, a alíquota fixa do estado do Rio de Janeiro seria de R$ 1,637 e a de São Paulo, de R$ 1,029.
“Estamos falando de uma variação de 37%. Hoje, já há uma distinção entre as alíquotas estaduais, mas a disparidade pode se tornar muito grande”, diz Melotti.
O advogado José Guilherme Missagia, tributarista e sócio do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados, concorda que a proposta, como está, pode ser considerada uma ofensa ao Pacto Federativo e uma invasão da competência legislativa plena dos estados.
“Haveria, nesta situação, ofensa ao pacto federativo, pois determinados estados, a depender não somente da alíquota ad valorem até então praticada, mas também dos preços ao consumidor final aferidos, poderão vir a sofrer perdas arrecadatórias desproporcionais a outros estados, colocando-os em posição anti-isonômica aos demais”, diz Missaagia.
Alegação de interferência na política fiscal
Na avaliação do advogado Tiago Severini, sócio da área tributária do Vieira Rezende, os estados, principalmente os mais impactados, como São Paulo, poderão alegar uma “interferência em sua política fiscal, além de qualificarem a vinculação do teto às alíquotas praticadas por cada estado em dezembro de 2020 como um tratamento discriminatório”.
“O formato proposto acaba por afetar mais significativamente exatamente os estados que possuíam postura mais comedida quanto à alíquota do ICMS aplicável”, afirma Severini.
O diretor institucional do Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos estados e do Distrito Federal (Comsefaz), André Horta, afirmou que a possibilidade de ir à Justiça contra o PLP 11/2020 já foi colocada pelo governador do Piauí, Wellington Dias, do Fórum dos Governadores. Segundo ele, embora vários estados apontem a inconstitucionalidade da proposta desde a sua propositura, a possibilidade de sua judicialização ainda não foi discutida pelo Comsefaz, uma vez que o PLP ainda tramitará no Senado Federal.
Especialistas divergem sobre mudança
Superada a discussão sobre a constitucionalidade e legalidade da proposta, tributaristas divergem sobre a mudança na regra em si, de um percentual sobre o preço médio dos combustíveis para uma alíquota fixa por unidade de medida.
Para Tiago Severini, do escritório Vieira Rezende, o projeto pretende criar um mecanismo bastante complexo, que vai dificultar ainda mais o cálculo e a fiscalização dos preços dos combustíveis. Ele critica ainda que o modelo proposto não resolve o problema na alta do preço, uma vez que “as principais causas da variação não serão atacadas e continuarão a causar volatilidade”.
“Na melhor das hipóteses, o mecanismo previsto pelo projeto vai trazer um aparente efeito paliativo, por conta do congelamento anual, mas que será certamente compensado pelos estados através de outras fontes de arrecadação”, critica Severini.
Missagia, do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados, afirma que o projeto objetiva tão somente limitar a carga tributária de ICMS nas operações com combustíveis sujeitas à sistemática de substituição tributária.
“Não há, neste projeto, o aperfeiçoamento da legislação aplicável a estas operações, muito menos dele deriva uma ação eficaz e duradoura para o controle de preços dos combustíveis e suas respectivas oscilações. Trata-se unicamente de uma medida emergencial na tentativa de mitigar os impactos que vêm sendo causados pela alta do dólar sobre o preço dos combustíveis”, afirma Missagia.
Já para Melotti, do Bichara Advogados, a mudança poderá ser benéfica para a sociedade e todo o mercado. A seu ver, se, além de a alíquota for fixa, ela for, por definição das leis estaduais, concentrada nos importadores, nas refinarias e nas usinas, sem se dissipar por toda a cadeia, a arrecadação poderá subir.
“Isso diminuiria o esforço de fiscalização e eliminaria do mercado agentes não republicanos, como distribuidoras de fachada que não recolhem o tributo e fecham as portas. O efeito disso no médio prazo seria um aumento na arrecadação”, defende.
O tributarista Julio Assis, sócio do FCAM Advogados, afirmou que a polêmica em torno da tributação dos combustíveis seria resolvida com uma reforma tributária abrangente. Pelo parecer do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) à PEC 110/10, da reforma tributária, por exemplo, seria criado o IBS, de competência dos estados e municípios e que uniria ISS e ICMS.
“O ideal seria fazer uma reforma tributária abrangente e pensar nesses assuntos de forma estruturada. Estamos aqui travando uma disputa sobre a arrecadação. Se eu tivesse um único tributo arrecadado no conceito do IBS e depois dividido entre os entes da federação, não haveria essa discussão”, afirma Assis.
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